As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já de cor de terra
- como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da
nobre cólera dos justos
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza
que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços
da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas...
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los
contra o vento?
Ah! Como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das
tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura das tuas mãos nodosas...
essa chama de vida – que transcende a própria vida
...e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.
Mario Quintana
No dia 31 de agosto farão quatro
anos que meu pai partiu para a eternidade. Já consigo falar sobre ele com mais
tranquilidade, conquanto com emoção, como é comum quando penso nele.
O vi pela última vez em minha casa, quando os
filhos, netos e ele, comemorávamos com um delicioso churrasco o dia dos pais.
Ele sorriu muito, como era seu costume, e contou muitos casos engraçados, como
também era do seu costume. Após o almoço, contrariando sua prática, admitiu
dormir um pouco em uma deliciosa poltrona na sala de TV. Dormi também. Ao
perceber a movimentação do grupo para ir embora, levantei-me. Interceptei meu
pai na sala maior da casa, dei-lhe uma pequena lembrança e olhei no seu rosto
vivo pela última vez.
No próximo encontro vi apenas o
seu corpo, sem sorriso, sem o brilho e sem a alegria sempre constante mesmo nos
momentos mais duros pelos quais passou. As mãos inertes, pequenas e sobpostas,
contavam muito de sua história.
Meu pai se chamava Sebastião, às
vezes Bastião, ou ainda, Tião. Ele nasceu em Aurilânida, fora criado ali
naquelas redondezas. Há alguns dias atrás passei nessa região, Firminópolis,
Nazário. Foi ali que meu velho pai viveu boa parte de sua infância e adolescência.
Ele era o segundo filho do
primeiro casamento de minha avó. Ainda adolescente se tornou arrimo da família,
visto que seu pai fugira para o Mato Grosso após fazer umas daquelas besteiras
apropriadas apenas para homens tolos. Trabalhou na roça ainda jovenzinho.
Lembro-me das estórias tão precoces já experimentadas por alguém de tenra
idade. Aos quinze anos já usava chapéu e o usou até os quarenta, quando os
homens perderam este hábito.
Apesar de colocar as mãos nas
ferramentas muito cedo, meu pai também foi menino. Caçou, pescou, nadou no rio
Turvo, jogou futebol (de botina), dançou forró, foi ao circo, chupou picolé.
Meu pai não estudou muito.
Aprendeu a ler na marra, por precisão. Nunca o vi lendo um livro sequer, a não
ser, poucas vezes, a Bíblia. Apesar dessa limitação meu pai era inteligente,
perspicaz, fazia uma leitura boa do mundo e das pessoas. Tinha uma habilidade
com várias ferramentas, mas era na enxó que ele mais brilhava. Parecia uma arte
o que fazia lapidando madeiras. Mãos de artesão ele tinha. Que coordenação
motora, que precisão nos golpes. Somente o Carlinho, o filho mais velho, herdou
um pouco, só um pouco, desta habilidade.
Ademais meu pai era um
profissional habilidoso, responsável, inteligente. Construiu pontes, casas,
currais, galpões, grades e muito mais. Trabalhou muito mas ajuntou muito pouco.
Um pouco de tolice na juventude, unida à falta de perseverança em alguns
projetos, o fez morrer sem posse alguma. Morava em uma casa que Valdenice e eu
compramos para ele. Que alegria vê-lo ali nos últimos quinze anos de sua vida.
Ali recebia amigos e parentes. Mas era receber os seus dez filhos a sua maior
alegria.
Este Sebastião tinha mais
qualidades e defeitos. Era corajoso demais. Napoleão Bonaparte disse certa vez
que não conhecia o medo. Talvez meu pai pudesse repeti-lo. Nunca teve medo de
homem algum, nem de coisa alguma, visível ou invisível. Certa vez contei-lhe
uma história do meu tempo de Cuiabá. Disse a ele que em um determinado caminho
um homem ia para casa de bicicleta e foi derrubado com um soco. Ao cair não viu
nada. Não havia ali ninguém. A estrada era considerada como que “assombrada”.
Disse a ele que eu passava ali semanalmente para dirigir-me à congregação do
São Gonçalo, onde eu era pastor. Meu pai ouviu a história, pensou e disse: Se
alguém fizer isto comigo, ele teria que aparecer. Eu não iria embora até ver o
rosto de quem me bateu, mesmo que seja o capeta.
Meu pai, talvez pelo excesso de coragem,
brigou muito, confrontou muito, se indispôs muito. Conquanto tivesse mais
amigos que inimigos, em seu tempo de não convertido, testemunhei a dureza de um
coração que não conhecia o Senhor Jesus.
Meu pai gostava do Goiás e do
Flamengo ao mesmo tempo. Que mau gosto pelo segundo time. Gostava de comer bem, e muito; gostava de se
encontrar com seus dois irmãos (Carmindo e Osvaldo) bem como com seus amigos
prediletos (Ailton e Onilton). Conversava pouco, mas fazia sempre um comentário
após ouvir uma história, um relato ou uma notícia. Ainda hoje sinto falta de
sua voz nas rodas, nos encontros família. Façam minhas as palavras lamuriosas
de Nelson Gonçalves que dizem: Naquela mesa está faltando ele e a saudade dele
está doendo em mim.
Quando meu pai em minha se
separaram eu ainda era aluno do Seminário. Todos os filhos sofreram muito, mas
o tempo foi benevolente conosco. Logo a inimizade dele e minha mãe se
transformou em uma boa relação, talvez em função dos filhos que cercavam os
dois. Quando morreu não havia uma só rusga, uma só demanda. Foi um bom
ex-marido e um excelente pai de todos.
Na terceira idade teve um
encontro maravilhoso com Jesus. Fui visitá-lo com o único propósito de
conversar com ele sobre a salvação de sua alma. O Toninho (um dos irmãos mais
novos) havia trazido pudim. Comemos o pudim nós três, com café. Até que foi
bom. Após isso cumpri o meu propósito. Falei sobre o fato de ele conhecer a fé
cristã há tanto tempo e não manifestar em seu coração uma fé salvadora. Mas ele
tomou a palavra. Disse que havia entregado sua vida a Jesus e estava pronto
para morrer. Morreria com Cristo e iria para o Céu. Meus irmãos, que moravam
mais perto, testemunharam que nos últimos meses ele falava muito de Deus, do
Céu e demonstrava um coração humilde diante do Pai celeste. Nutro a esperança
de encontrá-lo do outro lado da vida, ao lado do Salvador.
Resta a mim, aos demais filhos e
amigos uma boa recordação, uma lembrança suave e gostosa deste homem simples. Meu
pai foi sepultado no túmulo onde sua mãe fora também. Ele tinha este desejo.
Ele amou muito a mãe. Quando fez quarenta anos de idade eu estava com ele.
Naquele dia ele me falou dela com tanta ternura. Como ela cresceu para ele após
o abandono do seu pai.
Alguns dias depois, visitando sua casa para ver seus
pertences, repartimos a sua herança. Eu fiquei com um velho relógio, que eu
mesmo havia dado a ele de presente. Também sobrou para mim um martelo, também
velho. Lembro-me de um que ficou com o canivete, outro com a tesoura com a qual
ele mesmo cortava o sem cabelo. Foi assim que os seus poucos pertences foram
fervorosamente recebidos pelos seus filhos. Lembro-me do comentário singelo de
minha mãe naquele dia: Estes objetos podem não significar muito para vocês
hoje, mas um dia terão um valor imenso. Esta profecia já se cumpriu em mim. No
entanto, nada do que ele nos deixasse poderia sobrepor a lembrança que temos
dele. Um homem honrado, incapaz de subtrair algo de alguém, trabalhador,
sincero e com um sorriso maravilhoso sempre que nos encontrava.
Mais uma vez volto ao
poema de Nelson Gonçalves: Mais do que seu filho, me tornei seu fã.
Que bom que foi assim.